Terceirização diminui o atendimento à população, precariza o trabalho, e abre brechas para perdas de recursos por irregularidade e corrupção.
FONTE: MATINAL JORNALISMO | 25 de setembro 2024 | por Gregório Mascarenhas (@gregorio_lm)
Publicada no site do Matinal Jornalismo: https://www.matinaljornalismo.com.br/matinal/reportagem-matinal/tce-aponta-pagamentos-indevidos-e-outras-distorcoes-em-parcerias-da-prefeitura-de-porto-alegre-com-entidades-da-area-da-saude/
Falhas em contratos da prefeitura de Porto Alegre com entidades da área de saúde geram prejuízos de 18,5 milhões, aponta TCE
Matinal teve acesso à investigação do Tribunal de Contas que aponta “graves distorções”, como pagamentos indevidos, e sugere devolução de recursos. Organizações citadas no relatório são responsáveis por quase 90% dos postos de saúde da cidade
Um relatório do Tribunal de Contas do Estado (TCE-RS) concluído no final de junho aponta que a gestão de parcerias com entidades que prestam serviços de atenção básica de saúde em Porto Alegre impossibilitou a ampliação de políticas públicas e lesionou “severamente” as contas do município. Os problemas teriam ocorrido ao longo de 2023. Os auditores usam a expressão “graves distorções” ao se referir às falhas no gerenciamento e fiscalização dos contratos com quatro grandes organizações da sociedade civil (OSCs).
A auditoria apontou sete tipos de inconformidades em quatro contratos firmados entre a Secretaria Municipal de Saúde, então gerida por Mauro Sparta, e a Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre, o Instituto Brasileiro de Saúde, Ensino, Pesquisa e Extensão para o Desenvolvimento Humano (IBSaúde), a Associação Hospitalar Vila Nova e a Sociedade Sulina Divina Providência. As conclusões dos auditores fazem parte de um relatório não público ao qual a Matinal teve acesso.
Atualmente, 116 das 132 unidades básicas de saúde de Porto Alegre são geridas por essas quatro entidades – o número representa 87,8% desses centros de saúde na capital.
Segundo a investigação do TCE, houve sete irregularidades: 1) falhas na gestão e fiscalização dos ajustes dos contratos, 2) problemas no sistema de coordenação dessas parcerias, 3) deficiências na infraestrutura das unidades de saúde das instituições parceiras, 4) utilização indevida de recursos do chamado “Fundo de Reserva de Investimento e Manutenção”, 5) falta de transparência com custos indiretos e administrativos, 6) remunerações indevidas, 7) e ausência de devolução de saldos financeiros no encerramento dos termos de colaboração.
O relatório também aponta os responsáveis pelas falhas na gestão das parcerias tanto da administração pública quanto nas próprias instituições parceiras, que teriam recebido valores indevidos. O ex-secretário municipal da Saúde (SMS), Mauro Sparta, que esteve à frente da pasta até maio de 2023, foi responsabilizado no relatório por conta da assinatura de termos de colaboração com cláusulas inadequadas. Em uma delas há uma isenção de descontos oferecida às OSCs no primeiro quadrimestre do ano passado, o que teria gerado prejuízos às contas públicas. Já o secretário adjunto da SMS, Cesar Emilio Sulzbach, teria sido responsável por assinar outros termos de colaboração com cláusulas semelhantes, também considerados prejudiciais à gestão dos recursos públicos.
O atual secretário Fernando Ritter, que assumiu após a saída de Sparta, é apontado como responsável pela falta de organização administrativa que teria inviabilizado uma correta conclusão de processos de prestação de contas, resultando em prejuízos financeiros à prefeitura. A diretora da Empresa Pública de Tecnologia da Informação e Comunicação da Prefeitura de Porto Alegre (Procempa), Leticia Batistela, foi responsabilizada pela omissão na assistência a SMS, pois não garantiu a instalação de pontos eletrônicos nas unidades básicas de saúde, o que prejudicou o controle de presença das equipes. Mesmo diante das irregularidades e ciente da ausência de pesquisas de satisfação – uma das metas para efetuar o pagamento –, a gestora dos contratos com as OSCs a partir de julho de 2023, Vânia Maria Frantz, atestou a regularidade da prestação de serviços, permitindo os repasses indevidos às entidades.
As quatro organizações com as quais a prefeitura mantinha contratos – Santa Casa, Vila Nova, Divina Providência e IBSaúde – também foram culpabilizadas, por receberem pagamentos vinculados a metas cujo cumprimento não seria verificável.
Prejuízos ao município podem chegar a mais de 18,5 milhões
De setembro de 2022 até o final de março de 2023, a gestão da atenção primária em Porto Alegre foi executada, de forma emergencial, pela Irmandade Santa Casa de Misericórdia, pela Sociedade Sulina Divina Providência e pela Associação Hospitalar Vila Nova. Paralelamente, a prefeitura realizou mais dois editais de contratação de entidades. Formalmente, essas instituições iniciariam a prestação de serviço somente no dia 20 de março. Para evitar uma interrupção do serviço ao longo desse hiato de 20 dias, as OSCs permaneceram na gestão das unidades de saúde, sendo posteriormente remuneradas por indenização administrativa. O TCE, no entanto, ao analisar os documentos no Sistema Geral de Parcerias (SGP), relatou não localizar qualquer documento comprobatório das despesas realizadas no período. “O fato é que o valor de R$ 11.743.054,82 transferidos às entidades não passaram por qualquer prestação de contas ou análise de documentação”, diz o relatório do Tribunal de Contas.
Esse montante é considerado indevido porque os auditores, ao analisarem os extratos bancários das entidades no período em que não havia contrato formal, verificaram que não foram utilizados recursos próprios das entidades, mas sim recursos excedentes de termos de colaboração constituídos no passado, que deveriam ter sido devolvidos aos cofres públicos.
“As OSCs não utilizaram recursos próprios para a quitação de despesa, mas sim foram utilizados recursos públicos transferidos anteriormente que não haviam sido aplicados na sua destinação anterior”, diz a auditoria. Foram R$ 5 milhões para a Santa Casa, R$ 3,7 milhões para a Divina Providência e R$ 2,9 milhões para a Vila Nova.
O relatório cita ainda um montante repassado à Santa Casa, durante a vigência do contrato, que não foi utilizado e tampouco devolvido à prefeitura após o encerramento dos ajustes. A investigação sugere que a entidade devolva R$ 4.830.202,15, além de possíveis rendimentos, ao município.
Débitos indevidos, de acordo com relatório do TCE
Associação Hospitalar Vila Nova: R$ 377.529,95 por Prejuízo à fiscalização decorrente da impossibilidade de mensuração da pesquisa de satisfação + R$ 2.932.393,78 por Repasse indevido (duplicidade de pagamento a título de Indenização Administrativa)
Irmandade Santa Casa de Misericórdia: R$ 352.642,43 por Prejuízo à fiscalização decorrente da impossibilidade de mensuração da pesquisa de satisfação + R$ 323.666,86 por Custos Indiretos/Rateio Administrativo + R$ 5.026.539,65 por Repasse indevido (duplicidade de pagamento a título de Indenização Administrativa + R$ 4.830.202,15 por Ausência de devolução dos saldos financeiros no encerramento do TC
Sociedade Sulina Divina Providência: R$ 417.439,10 por Prejuízo à fiscalização decorrente da impossibilidade de mensuração da pesquisa de satisfação + R$ 187.138,93 por Custos Indiretos/Rateio Administrativo + R$ 3.784.121,39 por Repasse indevido (duplicidade de pagamento a título de Indenização Administrativa
Instituto Brasileiro de Saúde, Ensino, Pesquisa e Extensão para o Desenvolvimento Humano: R$ 256.953,90 por Prejuízo à fiscalização decorrente da impossibilidade de mensuração da pesquisa de satisfação + R$ 68.686,04 por Custos Indiretos/Rateio Administrativo
Outros valores indevidamente pagos se referem a pesquisas de satisfação dos usuários não realizadas, entre junho e novembro de 2023. Essa era uma das metas das OSCs no contrato com a prefeitura. Para o TCE, há valores que devem ser devolvidos aos cofres públicos, totalizando mais de R$ 1,4 milhão. São R$ 352 mil da Santa Casa, R$ 417 mil da Divina Providência, R$ 377 mil da Vila Nova e R$ 256 mil do IBSaúde.
Há ainda uma rubrica de custos indiretos e rateio administrativo que, segundo o relatório do TCE, houve pagamentos indevidos de R$ 579.491,83. Seriam R$ 323 mil da Santa Casa, R$ 187.138,93 da Divina Providência e R$ 68.686,04 do IBSaúde. A auditoria verificou que não há documentação comprobatória que permita rastrear a proporcionalidade da divisão em relação aos ajustes mantidos com a prefeitura para essas despesas. “Ademais, foi possível identificar uma duplicidade de gastos, uma vez que determinadas despesas deveriam ser honradas com a rubrica de custos indiretos, mas foram também honradas com recursos diretos do projeto. Consequentemente, maior volume de recursos é repassado à entidade e ocorre uma diminuição de recursos a serem aplicados na atenção primária municipal”, diz o documento.
O Tribunal de Contas determinou que o secretário de Saúde de Porto Alegre instaure uma Tomada de Contas Especial para apurar possíveis excedentes de saldos financeiros nas contas bancárias das entidades parceiras e providenciar a devolução dos valores. A Unidade Central de Controle Interno do município também foi incumbida de acompanhar o cumprimento dessas determinações, com obrigação de notificar o TCE em caso de descumprimento, sob pena de responsabilização solidária.
Nenhum contrato sem problemas
Além desses prejuízos financeiros à prefeitura, o relatório aponta que nenhum dos processos de prestação de contas das parcerias foi concluído de maneira adequada. Foram identificados usos indevidos do Fundo de Reserva para Investimento e Manutenção (FRIM), que deveriam ser aplicados de forma específica em projetos e investimentos de saúde.
A auditoria diz haver “diversas deficiências” do Sistema de Gestão de Parcerias, principal mecanismo de prestação de contas utilizado pela Secretaria Municipal de Saúde. Entre esses problemas estão a ausência de indexadores de pesquisa, de padronização de documentação e desvinculação entre os documentos apresentados e as contas bancárias que custearam as despesas.
Para o TCE, “não há dúvidas” de que irregularidades existiram por conta de “deficiências fiscalizatórias generalizadas” na execução de ajustes, já que não seria possível medir a qualidade da prestação dos serviços ou de aferir a assiduidade e frequência dos profissionais da saúde pela ausência de competências definidas para a realização das prestações de contas.
No caso das entidades parceiras, o relatório sugere a aplicação de multas e a devolução de R$ 18,55 milhões. Seriam R$ 3,30 milhões da Vila Nova, R$ 10,53 milhões da Santa Casa, R$ 4,38 da Divina Providência e R$ 325 mil do IBSaúde. À gestora dos contratos Vânia Maria Frantz, além de multa, o relatório sugere a imputação de responsabilidade pelo débito de R$ 1,4 milhão.
Contraponto
Questionada pela Matinal, a Secretaria Municipal de Saúde diz que “não há irregularidade ou ilegalidade” no processo, que são apontamentos feitos pelo TCE com sugestões para “correção de alguns pontos” e que a forma de condução estaria de acordo com a lei e com os contratos assinados. “São procedimentos rotineiros para orientação da gestão pública”, informou a pasta. O prazo para as considerações da prefeitura seria o final da segunda-feira (23). “A partir daí a gente explica fluxos, podendo ou não acatar sugestões”, respondeu a assessoria de imprensa do órgão.
O TCE informa que se trata de um processo recente, e que ainda não se encerrou o período de esclarecimentos de todas as partes, razão pela qual a peça técnica ainda não está acessível publicamente.
A Santa Casa diz que o contrato prevê acompanhamento por meio de uma Comissão de Fiscalização por parte da prefeitura, que acompanha o cumprimento das metas qualitativas e quantitativas, de modo que qualquer obrigação eventualmente descumprida e que coubesse à instituição seria objeto de descontos e aplicação das penalidades previstas em no acordo. A Santa Casa ainda informa que a situação levantada pelo TCE, relativa às pesquisas de satisfação, será esclarecida no âmbito da Tomada de Contas que tramita no órgão.
A Matinal também entrou em contato com as demais entidades responsabilizadas no relatório, como Instituto Brasileiro de Saúde, Ensino, Pesquisa e Extensão para o Desenvolvimento Humano (IBSaúde), Associação Hospitalar Vila Nova e Sociedade Sulina Divina Providência . Nenhuma dessas instituições respondeu até a publicação desta reportagem.
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