Artigo de opinião publicado no Sul21
Por um grupo de professores de uma escola da Rede Municipal de Porto Alegre:
Anderson Gonçalves
Carlos Augusto Callegaro
Maria Angélica Mallman
Maria Auxiliadora Baggio
Patrícia Andrades Oliveira*
Há muito, deixou-se de utilizar somente giz e quadro negro para dar aulas nas escolas. Outras questões, outras didáticas e outras formas de ensino-aprendizagem estão presentes no fazer pedagógico. Além disso, outros fatores perpassam e influenciam os processos envolvidos no ensinar e no aprender.
O editorial de um jornal de grande circulação no RS, em uma edição recente, ao concluir, por exemplo, que apesar de a remuneração dos professores do município de Porto Alegre ser considerada elevada, isso não se traduz em melhores índices de aprendizagem dos alunos, concorda de modo meio enviesado, com o que nós, professores da RME, abordamos acima. Certamente não basta uma boa e justa remuneração para que se tenha uma boa e justa escola pública. É preciso muito mais.
Para que se entenda esse muito mais, cabe um exercício de análise da tese firmada pelo editorialista. Essa análise deve ser iniciada, necessariamente, pela proposta pedagógica que fundamentou até aqui o ensino ministrado nas escolas da Rede. Tal proposta construída conjuntamente por todos os segmentos da comunidade escolar vale dizer – pais, professores, alunos – e embasada nos princípios da gestão democrática, expressão que causa “brotoejas” no atual prefeito, só pela simples menção, foi – bem como a formação continuada dos professores-, alvo de ataque e desmonte ao longo dos últimos doze anos.
A Secretaria Municipal de Educação fosse qual fosse a proposta pedagógica da gestão de plantão, fosse qual fosse o administrador instalado no Paço, fosse qual fosse a razão, vem ao longo desse tempo, reduzindo os espaços de diálogo com as comunidades escolares e o espaço de diálogo dos docentes com os fundamentos teóricos que nos permitiam refletir e ampliar o “mais” necessário para qualificar os processos pedagógicos. Bom que se lembre, fundamentos sempre ligados à dura realidade vivenciada cotidianamente por nossos alunos. Na esteira desse “desmonte”, até mesmo o Plano Municipal de Educação, balizador da Rede, discutido e promulgado em 2015, que apresenta propostas para a melhoria da educação, acabou “esquecido”.
Para que aprofundemos o “mais” precisamos também falar da estrutura física das escolas municipais, muitas vezes esquecida, ou (mal)intencionalmente comparada com as “abandonadas” escolas estaduais. Basta uma rápida olhada para perceber que grande parte das escolas municipais encontra-se sucateada. Na escola onde trabalhamos, por exemplo, são inúmeras as infiltrações. A chuva invade as salas de aula, escorre pela rede elétrica e acumula-se inundando pátios, impedindo recreios e quase impossibilitando os deslocamentos pela escola. Aliás, em se tratando de rede elétrica, a da nossa escola está há muito ultrapassada. Não supriria, inclusive, as necessidades do Laboratório de Informática – igualmente sucateado – caso esse possuísse máquinas em número e condições suficientes para atender a demanda de alunos. A conexão com a internet, um dos itens que supostamente faria parte do “muito mais”, é tão ineficiente que por vezes prejudica até mesmo os serviços básicos da secretaria da escola.
Nosso ginásio de esportes está infestado por pombas, o que coloca em risco a saúde de todos que possam frequentá-lo; tem o telhado quebrado; o piso esburacado e os banheiros interditados. Talvez a única atividade pedagógica possível ali fosse uma que tematizasse sobre a negligência do poder público para com as escolas municipais. Tema que seria propício também à situação do esgoto a céu aberto, bem em frente à porta do refeitório, cuja verba para reparo foi liberada pela prefeitura, somente após matéria sobre esse absurdo ser veiculada pela televisão. Eis a fiel descrição das boas escolas mencionadas em relatório oficial e enaltecidas no editorial.
E se temos que falar dos “muito mais”, precisamos muito, mas muito mesmo, falar sobre violência. Nada é tão grave como a violência que atinge nossos alunos todos os dias. Choramos pelos mortos que já contamos às dezenas. Com tristeza encontramos seus lugares vazios como feridas abertas em nossas salas de aula. Choramos também por aqueles que se tornaram algozes. Ambos vítimas sem nome. Invisíveis. Simples estatísticas que não causam comoção nem aos gestores públicos, nem a grande mídia, nem a uma parcela da sociedade que finge que eles não existem.
Morar com medo, andar na rua com medo, conviver com toque de recolher quase toda noite. São dessas crianças e jovens que falamos. São esses nossos alunos. E sob tais condições é que temos que ensinar e eles têm que aprender. No entanto, nós e eles, diuturnamente, chegamos a nossas escolas, buscando esperança. Mesmo quando a bala, que atravessa o vidro e se aloja a milímetros de onde poderiam estar as nossas cabeças, ameaça a vida deles e a nossa. Eles não desistem. Nós não desistimos. Suas famílias não desistem.
Enquanto isso, o poder público negligencia cada vez mais o atendimento às comunidades de periferia. Não existem políticas voltadas para a juventude. Nenhum programa de lazer, cultura ou esporte. O atendimento à saúde é precário e a rede de assistência social está desmontada. Os Centros de Referência de Assistência Social – CRAS e os Centros de Referência Especializados de Assistência Social – CREAS, que já tinham suas demandas muito superiores à realidade de atendimento possível, hoje estão abandonados pela prefeitura. Há falta de recursos materiais. Há falta de recursos humanos. A par disso, a Secretaria Municipal da Educação, extinguiu um dos seus setores mais importantes, que auxiliava as escolas na assistência aos alunos em situação de risco: a ATAR – Assessoria Técnica e Articulação em Redes.
Diante de tantos “mais” não resolvidos, cabe dizer que nós, professores da RME – com nossos nem tão bons e nem tão justos salários – não nos eximimos das responsabilidades que são nossas. Acolhemos nossos alunos e suas famílias todos os dias. Choramos e rimos com eles. Brincamos com eles. Vibramos com eles. Lutamos com e por eles. E sim, ensinamos Português, Matemática, História, Artes… e todas as disciplinas que fazem parte do currículo formal de uma escola. Só não podemos assumir responsabilidades que não são nossas.
No entanto, nos colocamos à disposição para que depois que o poder público – tão preocupado com decretos de final de semana, pontos eletrônicos, tutoriais de danças e sem nenhuma proposta social e pedagógica – cumpra com sua parte em todos os “mais” que permeiam o sucesso da educação; possamos todos sentar juntos. Nós, os gestores municipais, a mídia tão interessada com o sucesso dos nossos alunos e aquela parcela da sociedade que se dirige a nós, frequentemente, de forma desrespeitosa para que juntos falemos de “índices e proficiências”.
*Apoiadores:
Anelise Ferreira Riva
Anelise Sousa
Dario B. Peres
Denise Almeida
Fátima Carmona
Jaqueline Souza
Karine Storck
Lucia Possebon
Margarete Rossoni
Patrícia Cornetet
Paula Aguiar
Sandra Lenz
Simone Debon Gregol
Vicente Medaglia
*Autores e apoiadores são professores de uma escola da Rede Municípal de Porto Alegre, RS.
Fonte: http://www.sul21.com.br/jornal/para-alem-do-discurso-da-midia-indices-e-proficiencias-por-um-grupo-de-professores-de-uma-escola-da-rede-municipal-de-porto-alegre/
Tags: Alunos, Atempa, Educação, Ensino, Escolas Municipais, Famílias, municipários, PortoAlegre, Professores, simpa, SMED, Sul21, violênciaMais notícias
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