Por: Nati Gasparani, professora da Rede Municipal de Porto Alegre
“Governos sem projeto caçam funcionários públicos”, bem afirma Juremir Machado em uma coluna deste mês no site do Correio do Povo. De fato, assim como o governador Sartori, o prefeito Marchezan parece querer “mostrar serviço” assediando o serviço público das mais diversas formas. Como, no munícipio de Porto Alegre, os serviços públicos, na verdade, são a única presença do Estado que atende a população mais pobre – as escolas nas zonas mais periféricas, os postos de saúde, os centros de referência em assistência social – , Marchezan ataca, na verdade, a população pobre, em sua maioria negra, trabalhadora, com famílias sustentadas majoritariamente por mulheres.
Todos os dias, quando chego na escola, é uma surpresa diferente. Isso porque no campo da educação os ataques são quase que semanais. Marchezan tem empreendido uma cruzada contra a autonomia e a qualidade da educação municipal, fruto de um projeto de gestão coletiva de mais de 20 anos na rede. Primeiro, impôs uma rotina escolar que não condiz com a realidade das comunidades. Agora, estudantes chegam mais cedo na escola, porém sem aula. Ficam horas na fila do refeitório, muitas vezes desistindo de realizar a refeição e são proibidos de repetir determinados alimentos.
Professores não podem mais se reunir durante a semana, momento crucial não só para o planejamento pedagógico adequado, mas principalmente para a detecção de situações de risco na vida dos estudantes. A “redinha”, proposta de acompanhamento conjunto de alunos em situação de vulnerabilidade social que envolvia agentes de saúde, assistentes sociais, professoras da orientação escolar e o Conselho Tutelar, também foi inviabilizada. As escolas que possuíam mais de uma vice-diretora para organização do cotidiano escolar, incluíram as burocracias do cartão-ponto, que toma boa parte do tempo de trabalho das equipes diretivas e mais dificulta do que facilita a rotina.
Mensalmente, Marchezan ameaça corte de verbas e parcelamento de salários, criando um ambiente de terror em cada sala de professores. À mídia, retrata os docentes como marajás privilegiados e desqualificados, insinua a contratação de empresas terceirizadas para avaliação dos alunos, extingue projetos de incentivo à leitura geridos pelas comunidades escolares para colocá-los nas mãos de grandes empresas.
O último ataque simplesmente deixou as comunidades em estado de choque. Sem qualquer comunicação oficial para as escolas, a Secretaria de Educação bloqueou no sistema de matrículas a inserção de novos alunos na Educação de Jovens e Adultos, enquanto o governo noticiava o “corte de gastos” com novas contratações, graças ao realocamento de professores dessa modalidade em outros turnos. Ou seja: é o fim do ensino noturno que inclui jovens e adultos trabalhadores em risco de evadir da escola, para que, em seus números, Marchezan possa mostrar “resultados” de enxugamento das contas.
Seguindo a lógica do fechamento do UniPoa, curso pré-vestibular gratuito para jovens de baixa renda, o prefeito justifica suas ações dizendo que não é dever do município educar jovens e adultos. Parece que o projeto de Marchezan é, para “economizar”, lavar as mãos quanto à vida de jovens negros da periferia, deixando cada vez mais atraente a vida do tráfico. Os projetos de governo desse partido ficam, portanto, nítidos. Enquanto isso, membros de seu partido, o PSDB, foram acusados nos últimos anos, mas nunca condenados, por envolvimento com produção e tráfico de grandes quantidades de drogas ilícitas, como a cocaína.
Saio da escola tonta com essa notícia. Na parada do ônibus, encontro jovens que estão cursando o Ensino Médio e foram meus alunos ano passado. “Nunca tem aula, ‘sora’”, dizem eles. “As escolas estaduais estão sempre sem professores. Saudade do ‘coleginho’”, afirmam. Penso: é o projeto de fim da escola pública, já avançado no nosso estado, chegando às escolas municipais. Em breve, muito em breve, seremos nós.
E nós, professores e professoras, sentimos saudades da escola gerida pelas comunidades, ou pelo menos da época em que essa era consultada, quando o foco da escolarização nas periferias era educar as crianças para elas terem mínimas condições de sobrevivência no mercado de trabalho, contando com habilidades críticas, de raciocínio matemático, acesso à escrita e à leitura.
Sentimos saudades de podermos de fato decidir com a comunidade dos entornos das escolas sobre os calendários, as prioridades, as turmas e os turnos, quando podíamos ajudar no encaminhamento psicológico, psicossocial, de saúde, incluindo questões bem recorrentes nas comunidades, como gravidez na adolescência e situações de violência doméstica, sem os quais as notas nas provas externas, que tanto preocupam o prefeito, jamais poderão melhorar. E qualquer pessoa que não tenha nascido em berço de ouro e conheça minimamente a cidade pode concordar com isso. Nos culpam pela má qualidade da educação, mas nos tiram a dignidade e a possibilidade de fazer um bom trabalho.
Marchezan pode até dizer publicamente que ataca os “privilégios” dos servidores públicos. Mas, hoje, a população sabe que, na verdade, seu inimigo número um são as condições de vida digna da população trabalhadora das periferias da cidade.
Para parar com esse processo, é preciso que toda cidade abrace esse projeto: se não nos deixarem educar, o inimigo número um da cidade será a Prefeitura.
Artigo originalmente publicado na página Esquerda Online
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